Lições do Bule de Chá
Lá estava ele, o orgulhoso Bule de
Chá, orgulhoso se si mesmo, orgulhoso de ser feito de porcelana, orgulhoso de
seu bico longo, orgulhoso de sua alça larga e grossa, para garantir seu
manuseio, com toda segurança.
Ele tinha algo de que muito se
orgulhava em sua frente e algo em suas costas e ele falava com veemência sobre
isto, contudo, ele não falava sobre sua tampa, pois ela tinha uma rachadura que
havia sido reparada por alguém, mas o serviço não havia sido bem feito e ela
podia ser vista a olho nu, por qualquer um.
Ele em seu todo era muito bonito, mas
tinha um pequeno defeito e não gostava de falar sobre isto, mas os outros, com
certeza falavam e certamente, mais do que deviam. As xícaras, os pires, o pote
de manteiga e o de açúcar, as colheres e as facas de pão, quando olhavam para
ele, a primeira coisa que lembravam, era do defeito de sua tampa e o Bule de
Chá sabia disto, ele conhecia todos muito bem e dizia a si mesmo, que ele tinha
plena consciência disto e que ele sabia que em sua tampa rachada, que ele
carregava sobre si, estavam estampadas sua modéstia, sua humildade, coisa que
nenhum dos outros compreendia.
Todos nós temos defeitos, mas também,
cada um de nós, sem exceção, tem seus talentos, tem virtudes, é questão de
sensibilidade de quem nos olha, para poder enxerga-los. Ele falava consigo
mentalmente, que às xícaras foi dado uma alça, ao pote de açúcar uma tampa e
que a ele, foram dados ambos, mas uma coisa ele tinha que não foi dada a nenhum
dos outros em sua criação.
Ele tinha um bico, e isto, fazia dele
o Rei da mesa de chá. O pote de açúcar e a manteigueira, tiveram a sorte de
terem sido feitos artesanalmente e tinham seu valor como obra de arte, mas era
ele quem fazia a infusão das mais aromáticas folhas para preparar o chá, ele
era o provedor do sabor e do aroma, que davam o prazer e o encanto da hora do
chá.
Era ele que transformava as folhas
através de água fervente e sem sabor, na maravilha que tanto agradava o paladar
dos humanos, trazendo momentos únicos de puro deleite, ao degustarem gota por
gota a bênção que ele lhes trazia através do chá. Isto tudo, mesmo que só
mentalmente, foi dito a si mesmo, naquele momento, no auge de sua juventude,
pelo Bule de Chá.
Então um dia, num momento comum, de
uma mesa de chá, ele foi levantado pelas mais delicadas mãos, as mãos de uma
criança, mas estas mãos estavam trêmulas e ele caiu. Seu bico quebrou, sua alça
se espatifou em pedaços e sua tampa, bem, de sua tampa, os outros componentes
da mesa de chá já haviam falado o bastante, não é necessário mencionar.
E lá estava ele, o Bule de Chá, caído
no chão, em meio a uma poça, com o liquido precioso, escorrendo sem parar. Ele
recebeu uma grande pancada ao cair, mas a mais dura e dolorosa pancada, foi que
todos os outros, riram dele, não das mãos delicadas e tremulas, que o deixaram
cair. “Minha memória eu nunca perderei” disse o Bule de Chá a si mesmo uns
tempos depois, enquanto reflexivo, relembrava a trajetória de sua vida. Depois
do acidente, ele foi chamado de inválido, de inútil e imprestável, colocado num
canto qualquer, até que foi dado a uma velha mulher, que passou na porta da
casa, pedindo esmolas, ou qualquer coisa, de que não mais precisassem.
Naquele momento, sentindo-se
rejeitado, humilhado, lá ele se foi, mudo, sem palavras, tanto por dentro
quanto por fora, tamanha sua decepção. Mas naquele momento, uma vida melhor
estava começando para ele depois do desastre que aconteceu. Na vida, de uma
coisa, a gente se torna outra, no decorrer de nossa jornada. Quando a velha
mulher chegou em sua casa, terra foi jogada dentro do Bule de Chá e para um
Bule, é o mesmo que se ele fosse enterrado, mas no meio da terra, foi colocado
um bulbo de uma flor. Quem o colocou lá ele não sabe, ele não viu, mas naquele
momento, ele estava começando a receber a compensação pelas perdas que sofreu,
dentre elas, as mais importantes, foram a perda de seu status de Rei da mesa de
chá e a perda de seu bico e de sua alça.
Dentro dele, no meio da terra fértil,
o bulbo se tornou seu coração e ele nunca havia tido um igual, pois este tinha
vida que pulsava mostrando que estava vivo. Então, dentro do Bule de Chá, mais
uma vez havia vida, mas desta vez, com muito mais força, com mais vitalidade e
o bulbo de flor pulsava, até que um dia, um broto nasceu. Ele havia acabado de
vir ao mundo e estava cheio de emoções, envolto em muitos pensamentos, na ânsia
de viver e num belo dia ele floresceu e o melhor de tudo, o Bule de Chá que viu
isto acontecer, ele esqueceu de seus tormentos, de sua tristeza, encantado com
a beleza da flor.
Ele estava tão radiante com aquele
momento que depois de muito tempo, sem falar nada, nem a si mesmo, ele disse em
voz alta, que não há maior bênção divina, do esquecer de si mesmo e de todos os
problemas, contemplando o milagre da vida. A flor fez que não ouviu, ela não
agradeceu, ela não pensava nele, afinal era admirada, ela era reverenciada, não
precisava dele, mas ele, ele estava feliz, e não é difícil imaginar, quão feliz
ele deve ter sido. Algum tempo depois, o Bule de Chá, já velho, aleijado e
cansado, ouviu alguém dizer que a flor era tão linda, que merecia outro vaso
melhor.
Ele não tinha um coração de verdade,
mas era como se tivesse, pois ele se partiu em dois, no momento em que isto
aconteceu. Não demorou muito, tiraram a flor e a terra de dentro do velho Bule
de Chá e a replantaram num vaso novo e resplandecente. O velho Bule de Chá,
quebrado, inválido, com um corpo feio e marcado pelas rugas causadas por sua
porcelana que rachou, foi jogado no cesto do lixo, cujo lixo, foi levado pelo
lixeiro, que por sua vez, o despejou num lixão.
Mas esta história não acaba por aqui,
porque mesmo enterrado, sob toneladas de lixo, como qualquer outra coisa inútil
e imprestável na vida, ele estava feliz, porque dizia a si mesmo, com toda a
convicção, que poderiam tirar qualquer coisa dele, como o fizeram durante toda
a sua vida, mas a sua memória não, ela era a única em que ninguém iria colocar
a mão, portanto ela, sendo imortal, seria sempre dele, a única coisa, que ele
nunca iria perder.
O Bule de Chá, feito da mais fina
porcelana, desde seus dias de glória em sua juventude, até a rejeição e
abandono final em sua velhice, teve uma dura, mas encantadora caminhada em sua
jornada pelos caminhos da vida, e no final das contas, ele nada mais fez, do
que nos mostrar com sua saga, criada pela mente do escritor, que tudo que
aconteceu, nada mais é, do que uma verdadeira e profunda reflexão sobre o fato,
de que até mesmo os destinos das coisas e dos objetos, muitas vezes são como se
fossem, parábolas de uma vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário