Tudo começou numa viagem de ônibus. Era um dia quente e abafado, o
trajeto era longo. Por precaução antes do embarque, comprei uma garrafa
de água para me hidratar durante a viagem. Logo que sentei no lugar que
me correspondia, uma velha senhora sentou-se ao meu lado. Parecia muito
triste e embora se esforçasse não conseguia conter as lágrimas.
O ônibus pôs-se em movimento numa marcha lenta, tentei dormir mas, de
vez em quando, observava aquela senhora, em seu rosto estava estampada
uma triste imagem de abandono e desolamento. Quando a percebi mais à
vontade, experimentei perguntar-lhe para aonde ia; depois de um longo
suspiro, veio a resposta também muito longa.
Contou-me não só para aonde ia mas também o motivo pelo qual estava
viajando.Narrou-me sobre a sua vida, as dificuldades que tivera para
criar seus cinco filhos, o seu orgulho em vê-los adultos e
independentes. Falou-me também de seu desespero quando da morte de seu
marido e as conseqüências que este fato trouxe para ela.
Depois de tantos anos de muito trabalho e sofrimento, sentia-se velha
e inútil, renegada pela família, um peso para a sociedade. Enquanto ia
narrando os fatos, de vez em quando ela repetia uma frase que até hoje
sinto um calafrio cada vez que ela me vem à memória, com a voz triste e
desiludida dizia: "É moço, é muito triste a gente ficar velha".
No final da viagem ela me abraçou e, com lágrimas nos olhos
agradeceu-me pela companhia e por ter lhe reservado a minha atenção.
Fiquei muito comovido com aquela história e quando saí do ônibus tive a
tentação de jogar aquela garrafa que havia comprado, com água, no lixo.
Evidentemente, a esta altura ela já estava vazia. Porém, por uma razão
que não soube explicar direito naquela hora, julguei que em outra
oportunidade ela poderia ser útil.
E de fato foi, todos os dias antes de sair para o trabalho, abastecia
a garrafinha com água e levava comigo, aquele objeto sempre me remetia
àquela viagem, lembrava-me daquela senhora, sentia curiosidade de saber
como ela estava e, fazia-lhe uma prece esperando que estivesse em
segurança.
Por todos os lugares que eu ia, levava comigo a garrafinha com água,
pois para mim, não era simplesmente um utensílio, representava-me uma
tendência dos tempos: a era do descartável, onde as coisas nos são
importantes até que nos sejam úteis, depois, perdem o valor, perdem seu
apreço, se tornam um estorvo, e logo são lançadas no lixo. Ela trazia-me
também, a imagem daquela senhora, tão vulnerável, tão desiludida, tão
triste. Ela também era vítima desta tendência; também tinha perdido sua
vitalidade, seu apreço e também era vista como um "produto" descartável e
sem utilidade.
Depois de algum tempo, num final de semana, aproveitei a folga para
ir passear pelo parque, levei comigo a minha companheira cheia de água, e
mais uma vez ela me fez recordar a velha senhora. Isso sempre fazia com
que eu ampliasse as minhas reflexões a respeito deste problema. Ia
pensando em tantas vezes que descartei e quantas fui descartado. Tantas
vezes olhei para meus amigos ou familiares como se fossem "coisas", que
só existiam para atender as minhas necessidades e tive a sensação de que
muitas vezes eu também era visto desta maneira.
Numa altura do passeio, encontrei-me com alguns conhecidos e o pouco
tempo que estive com eles foi o suficiente para me descuidar e perder a
garrafinha. Procurei em todos os lugares por onde havia passado, mas não
a encontrei.
Voltei para casa triste e como a noite já havia chegado, logo fui
para a cama. Adormeci lembrando de minha garrafinha e sentindo uma
pontinha de remorso. Foi tão fácil perde-la, afinal, era apenas uma
garrafa descartável! Porém, a imagem da garrafinha vinha acompanhada de
uma imagem humana com o rosto triste e envelhecido que um dia conheci
numa viagem de ônibus, que também fora esquecido e descartado nos
caminhos da vida.
Durante o sono tive um pesadelo; sonhei que estava velho e havia sido
esquecido, abandonado, descartado como aquela senhora da viagem, ou
qualquer garrafa d’água vazia.